No meio das pequenas unidades das FAPLA e assessores cubanos divisavam-se grupos de pequenos combatentes, uniformizados e armados com as armas ligeiras da época, desempenhando todas as tarefas que os soldados adultos faziam, incluindo o de participarem directamente nas acções combativas
Jaime Azulay
A História não se apaga. O Jornal de Angola traz à estampa quatro inusitados depoimentos de antigos pioneiros combatentes que integraram as Forças Armadas Populares de Libertação de Angola (FAPLA) e estiveram engajados na luta contra as colunas sul-africanas.
No meio das pequenas unidades das FAPLA e assessores cubanos divisavam-se grupos de pequenos combatentes, uniformizados e armados com as armas ligeiras da época, como as PPSH, FBP, Streling e outras. Desempenhavam todas as tarefas que os soldados adultos faziam, incluindo o de participarem directamente nas acções combativas.
Hoje, com idades superiores a 60 anos, acederam falar à nossa reportagem, numa altura em que se iniciaram os preparativos para a comemoração do 50º aniversário da independência nacional, no próximo ano. Eles foram partícipes activos na luta para a concretização do sonho de várias gerações de angolanos.
Para sintonizarmos os leitores com a época, fazemos uma breve resenha da situação em Angola nos meses que precederam a proclamação da Independência Nacional pelo Presidente Agostinho Neto.
Na primeira semana de Novembro de 1975, após romper a linha de defesa das forças do MPLA na vila de Catengue, a “Operação SAVANNAH” chegava aos arredores da cidade de Benguela. A conquista de Benguela, no dia 7 de Novembro, era um dos pontos mais altos da ofensiva terrestre iniciada em Agosto de 1975, pelas Forças de Defesa da África do Sul (SADF), para impedir a proclamação da Independência de Angola pelo MPLA. Os Agrupamentos de combate chefiados pelos Comandantes Constand Viljoen, Ben de Wet Roos e Jan Breytenbach avançavam decididamente a partir da fronteira Sul para Centro e Norte de Angola, coligados com tropa mista da UNITA e da FNLA. O seu objectivo era chegar a Luanda antes do dia 11 de Novembro.
Segundo relatos do próprio comandante sul-africano, Jan Breytenbach, o efectivo de ataque principal, designado Agrupamento “ZULU” passou em modo de passeio por Cacula, após tomarem facilmente Sá da Bandeira (Lubango) e Moçamedes, aproximou- se perigosamente da vila de Catengue, onde as FAPLA montaram uma defesa com cerca de 1.200 homens organizados às pressas, pelo Comando da Frente Centro, chefiado pelos comandantes Monty, N‘gaKumona e Kassanji.
As FAPLA colocam nas trincheiras os recrutas e seus assessores cubanos, estes sob comando directo de Fidel Castro, a partir de Cuba. Os cubanos pertenciam às forças especiais das FAR e do MInint, tropas altamente preparadas.
As FAPLA tinham ali os seus melhores efectivos, com os comandantes de Esquadrão, muitos deles saídos dos Comandos e Dragões da última tropa portuguesa em Angola. Entres eles, estavam os soldados aguerridos oriundos do Shaba congolês, os catangueses. O combate inicia. Breytenbach, que comanda as SADF, reporta as suas primeiras baixas para o comando em Pretória, onde está Viljoen. Entretanto, a outra pá da tenaz de ataque da SADF marcha do Huambo pelo Londuimbale-Balombo e toma o desvio do Colango, na intersecção com a estrada número 100, que liga para Norte, ou seja Luanda, capital de Angola, para onde estavam concentradas todas as atenções nacionais e internacionais.
Técnico aposentado da RNA
José Costa “Malagueta” (Pioneiro Costinha)
O nosso primeiro depoente é o senhor José Costa “Malagueta” (Pioneiro Costinha), vive em Benguela, técnico aposentado da Rádio Nacional de Angola.
“Sou de uma geração de pioneiros que, na época, depois do 25 de Abril, ingressamos no MPLA. Fizémos o juramento de bandeira na Ganda, em Dezembro de 1974 o instrutor foi o “katanguês” de nome Cobra. Naquele tempo, tinha chegado a Benguela um contingente de militares katangueses, comandados por Moisés Bumba e pelos comandantes Miúdo e Cobra.
As pessoas que lembro de estarem comigo lá, no acampamento da Ganda, para o juramento, são o Vinhas Vasconcelos, o filho do Nuno de Menezes. Havia uma série de pioneiros que tinham idade inferior a 16 anos, porque, os demais pioneiros que tinham mais de 16 anos, foram para o CIR Kazage, no Moxico. Fomos o primeiro grupo a ingressar militarmente. Tínhamos também estudos políticos. Para quem conhece a história, sabe que quando o Presidente Agostinho Neto vinha a Benguela, havia uma guarnição militar de pioneiros, onde eu tinha sempre a honra de estar engajado.
A partir do juramento de bandeira, deu-se a minha entrada nas FAPLA, que já estavam proclamadas, desde 1974. Mas, antes disso, nós já tínhamos um núcleo de pioneiros guerrilheiros afectos ao MPLA e não às FAPLA propriamente dito. Lembro-me do Kinito, do Pioneiro Pirata, da Graça, do Dado, do Kamolas, do Tozé Baptista, do Rui Escórcio, da Rua dos burgueses, da família Matos. Daqui, de Benguela, estava o meu irmão Dodó, o Amaro Trindade, o Beto Makuto. A família Venâncio, Matos, filhos e netos do mais-velho Pacavira, Zé Caprego, os irmãos mais novos da família Rasgado, jovens da família senhor Agripino. Eram os pioneiros que tínhamos, que me motivaram.
A minha motivação vinha dos anos anteriores. Eu vivia na rua 11, no bairro Benfica que, ainda na época colonial, era um centro muito procurado pelos antigos homens do MPLA. Havia reuniões na casa do senhor Pacavira, na casa do senhor Severino e eu tinha um amigo do meu pai, o senhor Pinto e a esposa, Dona Carminda, que também faziam parte da resistência. Nessa época, eu servia de pombo-correio, sem saber. Eu levava bilhetinhos aos bares, para entregar aos Cohen, ao César Banzar, Santos Primo, os Rasgados, Severino. Na rua 13, havia também pessoas ligadas ao MPLA. Mas, em 1969, houve uma denúncia e o senhor Rodrigues foi dizer ao meu pai que eu estava metido naquilo e estava em maus lençóis. Fui mandado para o Lobito, para casa de um tio, que por sinal tinha acabado de regressar da tropa colonial e tinha ideias revolucionárias. Foi quando comecei a ouvir o Angola Combatente com ele, a acompanhar a luta de libertação de Angola.
A partir de 1974/75, participei em missões muito importantes, com o Dokui de Castro, o Rigoberto Cubano, o Humberto Lourenço, o Trindade e o Piedade e isso me motivou a estar num escalão grande. Estive ao pé de pessoas importantes como Hermínio Escórcio e outros responsáveis do DOM.
Tive missões muito importantes, uma delas foi a de dinamitar o quartel português, onde a direcção do MPLA achava que seria o local onde as forças sul-africanas ficariam estacionadas. Na altura, foi feito o trabalho de minagem, foi accionado o mecanismo todo, mas, infelizmente, as tropas sul-africanas mandaram um grupo de reconhecimento da UNITA, que detonou os pavilhões 42 e 57. Os outros pavilhões ficaram incólumes.
Nessa altura, o meu nome ficou a prémio. Uma vez que vim numa missão de barco do Cuanza-Sul para o Lobito, fui denunciado pelo filho do João Banana e fui preso pelos sul-africanos em frente à pastelaria Áurea. Meteram-se num tambor com gasolina até ao meu peito para me obrigarem a falar. Foi por isso que, a partir dali, não participei mais em acções combativas, até 1976, quando iniciei a actividade política na JMPLA, no Lobito, com outros camaradas que lá estavam e fomos para a campanha de colheita de café na Chicuma e na Babaera.”
SÉRGIO RAIMUNDO, O CÉLEBRE PIONEIRO KALUANDA
"Tenho muito orgulho do meu passado e não me envergonho dele"
“Ingressei nas FAPLA em meados de 1975, na Frente Centro, com um grupo de miúdos de Benguela e do Lobito, mais concretamente, no Lobito e, de imediato, segui para a Frente do Balombo, com o Totola, do Bairro Senhora da Graça, o falecido Gomes, da Camunda, o Kino (Tiroteio), Kaluanda Cambuta, o Camutari, o Carlitos pequeno, o Beto Blindado, todos do Lobito e muitos outros, onde combatemos ao lado de mais velhos, como o Calicas. Camolas, Marito do Mona Caxito (Gradp-1), o Tozé, que foi nosso comandante no Monte Belo, o Napica, a Carlota, a grande maioria do Bairro Compão, do Lobito. Chamavam-me pioneiro “Kaluanda” por ter vindo criança de Luanda com 6 anos. Não nasci em Luanda, mas no Dondo, Cuanza-Norte. Vivi sempre em Luanda, até ao sexto ano de vida, e cresci depois em Benguela, onde fiz toda a minha formação básica, na Missão da Senhora de Nazaré, liderada pelo falecido Padre Horácio, coadjuvado, na altura, pelo falecido Padre Pires. O meu pai foi um dos militantes assíduos, que fez parte das pessoas que receberam os primeiros guerrilheiros, como Kassanje, Camarada Jacaré, falecido Chipenda, o que tombou no Catengue, aquando da entrada em cena, pela primeira vez, das tropas sul-africanas, falecido Diquixi, que foi da Segurança, Chinganeca, era o camarada Pai. O meu irmão António Francisco Raimundo Neto, morreu no recuo do Sumbe (Novo Redondo), aos 14 anos, e o nosso Mais Velho era o Comandante Bruxo, morto na casa do Salupeto Pena, no dia 1 de Novembro de 1991, no calor da implementação turbulenta dos Acordos de Bicesse. A motivação na época que contagiou os jovens e adolescentes, porque nós tínhamos em média 12 a 14 anos, era a efervescência revolucionária que transmitia a todos os angolanos, incluindo crianças, de participarem directa e activamente na luta de libertação e pela Independência Nacional. Todos nós queríamos combater sem receio das consequências. Isto era assim em relação aos três movimentos, em função da simpatia política de cada um, muitas das vezes levados pela inclinação política do pai e de outros parentes adultos que fossem referência na família.
Comigo combateram, para além dos que atrás citei, o Vado Rasgado, já falecido, o Gomes da Camunda, também já falecido, o João Pirica, de Luanda, o Tiroteio, o Nicolau da Camunda, que recitou a poesia em umbundo no disco do Kissanguela, da Camunda, que depois emigrou para Portugal, onde faleceu recentemente, assim como os Mais Velhos, só para citar alguns, para além dos que atrás citei, Sangue Derramado, de nome próprio Francisco Kamaty, sei que até há bem pouco tempo foi administrador adjunto da Canjala, Domingos Maluco, Velho Victor do Dip, Bardoca, Revolução, Filho Perdido, Gildo, Frente Leste, Mundial, Ponta Negra e muitos outros.
Recuámos em 1975 para o então Novo Redondo, através da Anha do Norte e saímos no Egito Praia, porque as forças sul-africanas já tinham tomado o desvio (Culango), já que, erradamente, nós que estávamos a defender o Monte Belo, depois de sermos escorraçados do Balombo, recebemos ordem para abandonarmos as nossas posições para reforçar a defesa de Benguela, e deixámos aquele corredor desguarnecido, o que permitiu a progressão fácil das forças inimigas na altura, esquecendo-se que a nossa única saída para Luanda era por ali, de tal sorte que, os primeiros camaradas nossos que tentaram sair do Lobito para Luanda, tombaram quase todos no Culango e foi graças a um dos sobreviventes que conseguiu chegar de volta ao Lobito, que nos avisou que a passagem para Luanda estava fechada.
Então fomos todos para o Porto de Lobito, para apanharmos um navio e era uma luta pela sobrevivência, num salve-se quem puder. Neste navio, não consegui transportar nem um terço da tropa ali presente, porque todo o efectivo militar das Frentes Centro e Sul estava ali concentrado, desde o Bié, passando pelo Huambo até Banguela, Cunene, Huíla e Namibe.
E foi graças a um camarada nosso, já mais velho, que se recordou que antes da actual estrada que liga Lobito a Luanda, ou vice-versa, a ligação era feita pela Anha do Norte, então colocámos alguns BRDM(s) à frente para abrir caminho e os sul-africanos só à noite deram conta que estávamos a sair por ali, e atacaram a cauda da coluna, mas nós chegámos em segurança, à madrugada, em Novo Redondo, hoje Sumbe.
Nessa altura, os nossos comandantes eram Kassanje, Inkaca, Catondo, Monte, Roca Monita, Sapo e o seu irmão José Manuel, Frente Leste, Mundial e muitos outros.
Uma experiência de camaradagem, de irmandade, solidariedade e de lealdade sem igual, ímpar, pois, reinava o espírito de todos por um e um para todos.
Tenho muito orgulho do meu passado e não me envergonho dele, já que é justamente por conta deste passado que sou hoje o homem que sou, com uma visão sólida sobre o país, mas importa sublinhar, aqui e agora, que não foram os ideais que hoje norteiam a vida política do MPLA que nos mobilizaram para a luta de libertação e Independência Nacional de Angola, porque nós fomos educados politicamente que a nossa luta era para promover o bem-estar social de todas as filhas e filhos deste belo país, que se chama Angola, daí o legado de Neto de que “o mais importante é resolver os problemas do povo”.
Infelizmente, este legado caiu em letras mortas, mas se o MPLA quer continuar a ser poder em Angola, não precisa procurar “culpados”, basta trabalhar arduamente para transformar este legado de Neto de letras mortas em letras vivas, isto é, traduzindo elas na vida real de cada cidadão.
A história é longa, por isso não é possível contá-la em poucas linhas, mas prometo em breve lançar uma obra literária para passar este legado às novas e gerações vindouras.
O meu obrigado pela oportunidade concedida para participar neste trabalho histórico de grande importância.”
O MEU TESTEMUNHO
“Nós não fomos crianças-soldados”
Completamente alheio aos homens e às suas façanhas, o tempo vai correndo imparável, tal como o vento sopra nas anharas. Estamos a festejar o 49º aniversário da Independência Nacional.
As recordações permanecem indeléveis nas nossas mentes. Elas continuam espantosamente vivas e se vão projectando no presente, como sombras que se iluminam apenas quando sobre elas incide a intensa luz dos faróis da História.
Hoje em dia, segundo os padrões da ONU, seríamos chamados de crianças-soldados, pois, éramos muito jovens, quando segurámos as primeiras armas de guerra nas mãos e jogámos os livros para as calendas.
Após sobrevivermos a inenarráveis peripécias, nos tornamos homens, indelevelmente marcados por muitos momentos históricos complicados. Recordámos a perda de muitos companheiros, cujas almas, rogámos humildemente ao Criador, que as deixe descansar em paz, no esplendor da Luz perpétua.
As Nações Unidas definem criança-soldado qualquer pessoa com menos de 18 anos de idade, que tenha sido recrutada ou usada por uma força ou grupo armado, em qualquer capacidade.
Só a título de curiosidade, em 2022, cerca de 20 mil crianças estavam engajadas em diferentes guerras à volta do mundo, segundo o relatório anual da ONU sobre a participação das crianças em conflitos armados. Portanto, não sendo novo, o fenómeno tende a perpetuar-se.
Em 1975, nós ingressámos voluntariamente nas fileiras armadas do MPLA. Ninguém nos capturou forçadamente ou obrigou a pegar em armas.
Do contingente que protagonizou o recuo de Benguela e chegou a Novo Redondo ao longo dos dias 6, 7 e 8 de Novembro de 1975, havia combatentes mais novos que eu, como a Bela Russa, o Pioneiro Kaluanda, o Costinha e o Tiroteio.
Dois anos mais velho, tínhamos ainda o destemido Dias “Ngueta Mukuaxi”, que viria a tombar em combate durante o ataque ao Sumbe, em Março de 1984.
Votada ao completo abandono, a icónica Bela Russa de “Cabelos-Cor-de-Fogo” viria a morrer acometida por um câncer, em 2006. Deixou filhos, que ficaram desamparados e, até hoje, clamam no deserto pelo resgate da memória da sua mãe-guerrilheira. Outros mais morreram no esquecimento atroz!
Do nosso grupo, os que estão localizados e em vida, apenas ficamos dois. Eu e o Francisco Caldeira. Do Zezito Ramos, nunca mais recebemos notícias. Ao meu lado, no dia 12 de Novembro de 1975, desapareceu, também, o “Mingudu”, do esquadrão “Ngunza-Kabolo”.
Certamente, mais uma dúzia ou mais desses homens valentes haverá por aí, embarrados, esquecidos ou feitos esquecer.
Temos de descobri-los e resgatá-los para a vida digna e contarem, eles próprios, o seu passado, para constar na galeria dos filhos de Angola que lutaram porque acreditaram numa bandeira que ainda drapeja nos mastros da Nação e permanece grudada em seus corações.
Ninguém pode garantir se por cá ainda estaremos na próxima temporada.
Mas, que se definam novos conceitos para classificar essa ínclita geração que, com entrega total, defendeu com galhardia os ideais de nobreza que lhes foram propostos.
Mas uma certeza ainda temos! Nós não fomos crianças-soldado!
Honra à intrépida geração dos anos sessenta!
Glória aos jovens cultos, talentosos e apaixonados que foram brutalmente arrancados do jardim dos seus sonhos e dos seus projectos e foram tombar nas frentes de combate, em cumprimento do dever sagrado da defesa da Pátria.
(Jaime Azulay)
JOSÉ CABRAL (SANDE)
“Recebi uma metralhadora FBP aos 13 anos de idade”
Após os primeiros confrontos com a UNITA, eu recebi uma metralhadora FBP das mãos do comandante Jibóia e passei a ser o seu oficial de campo, até à sua morte em combate, ocorrida entre o marco de Canaveses e a povoação da Chimboa. Fiquei órfão até o comandante Bettencourt me acolher.
O general Bettencourt acolheu-me enquanto andávamos na ginga-joga. De manhã, a UNITA entrava pela via marco/Canaveses/Canjulo/BNA e nós saíamos pelo campo da aviação/Camunda/hospital do CFB. E nessa brincadeira, morreram Chipenda, Kussy e o capitão Manel (marido e pai dos filhos da Isabel Vaz Monteiro).
Isso durou até ao dia em que o comandante Pólo-pólo pós fim à brincadeira. Correu connosco do Cubal e juntou-nos aos guerrilheiros idos do Huambo e do Balombo/via Ganda, em direcção ao Catengue, onde já estavam em prontidão as forças coligadas FNLA/ELP e UNITA guiados por Emílio Marta. Nós e a quantidade de miúdos enviados do Jaquelino/Benguela fomos trucidados. Valeu a protecção do general Bettencourt que, com a minha colaboração, juntou um pequeno grupo de miúdos (incluindo um assessor cubano) que entre tiros e fugas conseguiu aportar no Dombe-Grande. O assessor cubano não sobreviveu. Postos em Benguela, fomos recolhidos, sujeitos a uma ordem unida, de algumas horas, no campo do nacional de Benguela e orientados a prosseguir o "recuo estratégico" em direcção a Novo Redondo". Deixei ficar a FBP e recebi uma "Bretha" (FN super), em direcção à fazenda “Santa Teresa”, na Canjala, onde as duas pontes de betão já tinham sido destruídas.
Num breve rasgo operacional, o comandante Bettencourt chegou à conclusão que as hipóteses de sobrevivência eram poucas. Então, escolheu as jovens e os mais cultos para regressarem, pois seriam mais úteis no regresso. Retirou a minha arma e traçou a rota de regresso pelo Egipto-Praia, praia do Muri, Hanha-praia, Praia Grande, Jomba - Lobito.
No regresso, em 1976, integrou-me no primeiro Curso de Especialistas Menores da Escola de Sargentos Rafael Zembo Faty ( Veneno) boina cinzenta e, terminado o curso, colocou-me como oficial operativo do primeiro Comando Unificado do Lobito, na então URP (Unidade Rádio Patrulha) com Jorge Sukissa/TGFA, General Independência/DISA e tenente Manico/Escola de Sargentos. O género foi representado pelas oficiais Marina dos Anjos Nogueira e sub-tenente Yolanda.
Ingressou nas FAPLA aos 14 anos
Francisco Caldeira (Caldeira): “fui tanquista aos 16 anos”
Eu ingressei nas FAPLA nos primeiros meses de 1975, em Novo Redondo, hoje Sumbe, na província do Cuanza-Sul. Na euforia da revolução, queríamos ser militares. Éramos vários amigos com opções políticas diferentes, uns foram na altura para a Cela, para um Centro da UNITA, e eu e uns companheiros como o Zezito Ramos e o Jaime Azulay, tentámos ir para o CIR Sangue do Povo. Devido à nossa idade, tínhamos 14 anos, se não estou em erro e fomos, de início, barrados, mas conseguimos convencer os responsáveis que acabaram por nos aceitar e fizemos uma formação com os já militares Domingos e Explode, que teriam sido dos primeiros esquadrões do CIR Sangue do Povo” (Vietname e Kwenha). A nossa primeira formação foi no meio do palmar da Boa-Venturança, junto ao rio Cambongo.
Ficámos posteriormente na guarnição da Delegação do MPLA, que era chefiada pelo comandante M´beto Traça. Recordo-me que éramos crianças que, aquando dos combates que se deram entre o MPLA e FNLA, e tudo ter parado na cidade, as lojas ficarem abandonadas, ao lado da delegação havia uma loja do Marques e Seixas, com vários produtos, tinha os vidros de uma montra partidos. Decidimos aproveitar a ocasião e retirar algumas coisas para nós. Assim, roubámos cada um carrito de brinquedo, chamados “dick-toy” e uma garrafa de gin para dar aos militares. Esses carritos serviam para brincarmos de corridas nas boas vagas, numa pista desenhada com giz no pavimento, na varanda da Delegação.
Nesse tempo, a moral e vontade eram enormes, o que me fez juntar, aquando da invasão dos “Carcamanos do Catano” (assim chamávamos na nossa inocência de criança aos invasores sul-africanos) aos combatentes que foram reforçar as tropas em Benguela. A minha intervenção iniciou no aeroporto de Benguela, onde conheci o Comandante Kassanje, tendo depois, com outros elementos e por orientação do Comandante, recuado num mini autocarro “Saviem” de cor azul, tendo no percurso Lobito/Canjala sido emboscados antes do desvio do Culango.
Ai, a história de ter andado com outros fugitivos, incluindo um cubano, até à Casa Branca, onde fomos recolhidos, quando familiares e amigos, em Novo Redondo, já me tinham dado como morto e a preparar o óbito. Com essa idade, e apesar de ainda brincar com carrinhos, já tínhamos a nossa noção de responsabilidade reconhecida, pois, para além de termos a guarda da Delegação do MPLA, aquando do recuo, fomos responsáveis para retirar toda a documentação e meios existentes na Delegação, incluindo ficheiros dos militantes, para que o inimigo não capturasse. A única coisa que não conseguimos tirar foi uma viatura “Mercedes”, que pertencia ao camarada delegado, mas que, posteriormente, outros camaradas mais velhos (Cte. Madaleno), vindos de Benguela, levaram. Nessa altura, recordo-me que éramos vários os pioneiros-FAPLA. Conheci vários e várias meninas também vindos de Benguela como a Arminda, que posteriormente convivemos na Algodoeira, no Porto Amboim, e que se presumo tenha morrido. Muitos camaradas morreram e de outros perdi o rasto. Nós fomos aqueles pioneiros que, ao contrário de muitos que hoje querem se vangloriar, não marchámos com armas de pau nos comícios com a farda da OPA, nós nos forjamos com armas na mão e marchávamos nos campos de batalha. A nossa motivação era forte, tínhamos consciência de que queríamos ser independentes e ter condições de vida diferentes e mais dignas do que aquelas que tínhamos no tempo colonial.
Durante a fase de expulsão dos sul-africanos, que terminou a 27 de Março de 1976, já éramos miúdos militares mas iguais aos grandes soldados. Entre esses miúdos, com menos de 16 anos, havia tanquistas, flecheiros, motoristas, artilheiros, enfim, “um exército de pioneiros valentes”.
Eu, pessoalmente tive a possibilidade de fazer a formação de tanquista com os cubanos e, pela minha idade e desempenho, fui enviado para Luanda, primeiro para a 9ª BRIM e depois para a Segurança Pessoal do camarada Presidente. O que mais me motivava e achava que estávamos no bom caminho, que tudo estava a valer a pena.
Durante anos, cumpri missões de responsabilidade em vários órgãos de Defesa e Segurança, bem como outras instituições, mas hoje sou diferente, toda a motivação se foi.
Eu chego a pensar e, no meu caso, pior, que fomos usados pelos camaradas que vieram da mata e, depois, por outros oportunistas que dirigiram as Forças Armadas e o Partido que tínhamos no coração.
O nosso povo, pelo qual lutávamos, não beneficia ainda, na sua plenitude, perderam os filhos nas guerras mas estão piores, temos algumas centenas de milionários, muitos deles nem uma arma empunharam e nas grandes dificuldades da guerra viviam na Europa.
Hoje temos um país destruído pela corrupção, onde as instituições deixaram de funcionar com normalidade, não conheço nenhum organismo ou instituição do Estado que se pode dizer que funciona bem, tudo é por interesses, tudo é por dinheiro.
Hoje não estou arrependido por toda a luta e por toda a minha participação na pacificação do nosso país, mas, honestamente, não era isso que queríamos, nem foi para isso que lutámos.
Eu, pessoalmente, chefiei missões e unidades militares, onde os louvores e medalhas foram dados a outros. Fui chefe de colunas neste país, levava centenas de carros por este país afora. Durante a “Operação Restauro” fui o responsável, com a minha tropa, de fazer chegar o equipamento e a alimentação até às frentes de combate e hoje nenhum reconhecimento nos foi dado.
Enfim, muita coisa para contar, mas um dia, com paciência, talvez o faça para que os meus netos e bisnetos saibam o quanto custou a nossa Independência. Para que se saiba que não foi unicamente a 11 de Novembro de 1975 que ganhámos a nossa liberdade e Independência. Ela vem de um passado de muita luta.