O antigo embaixador de Angola junto das Nações Unidas, Ismael Martins, ao partilhar o conhecimento adquirido por mais de uma década na organização, afirmou que o país foi relevante em momentos cruciais e defendeu que deve continuar a desempenhar um papel destacável a favor da reforma do Sistema das Nações Unidas.
Ismael Martins, que durante os anos em que serviu na ONU, representou o país no Conselho de Segurança e na presidência da Comissão de Consolidação da Paz do Sistema das Nações Unidas, afirmou que "o referido Sistema Internacional está desfasado da realidade actual”.
Ao dissertar, na última sexta-feira, sobre o tema "Angola, liderança de paz e mediação internacional”, na Conferência dos países do Sul Global, na Academia Diplomática Venâncio de Moura, Ismael Martins acrescentou que "o mesmo não tem respondido com eficácia à resolução dos problemas de guerra que nos afectam a nível internacional”.
Durante a Conferência alusiva ao Dia da Organização das Nações Unidas, promovida pelo Ministério das Relações Exteriores, em conjunto com a Academia Diplomática, tendo o apoio das Nações Unidas e de universidades brasileiras, o diplomata disse esperar, com a afirmação do Sul Global, que alguns dos problemas que ainda subsistem comecem a ser discutidos.
"O Sul Global vai continuar a se afirmar com mais força para se alcançar um diálogo mais igual”, sublinhou, destacando que "anseiam que esta afirmação surja, para que o mundo possa olhar de facto para os próximos 50 ou 100 anos de maneira diferente e, assim, melhorar o sistema internacional com a forte contribuição dos Estados do Sul Global”.
O diplomata referiu, a propósito, que no passado o Sul Global era chamado de Grupo dos Não Alinhados, e, mais tarde, de Grupo dos 77, mas sempre considerado como um grupo desigual, inferior e incapaz de afirmar a sua própria vontade.
Sobre o papel dos países do Sul Global na mediação internacional e consolidação da paz, tema do encontro que juntou especialistas de vários países, Ismael Martins considerou uma oportunidade para tornar a plataforma mais forte e afirmar-se cada vez mais.
Ainda no quadro da sua abordagem, o diplomata destacou o notável e recente papel desempenhado por Angola na pacificação da Região dos Grandes Lagos, do Malawi, da RDC e de outros países da sub-região.
No que toca aos factores que contribuíram para o reconhecimento de Angola como um pilar da paz no mundo, em particular na região Central e Austral de África, Ismael Martins recordou que a história contemporânea de Angola é marcada por um conjunto de posicionamentos corajosos, acções e iniciativas que visam promover a paz e a resolução pacífica dos conflitos, dentro e entre os países, como o garante das condições essenciais para o bem-estar social e desenvolvimento económico.
Esta característica e postura internacional, acrescentou, foi forjada pela sua experiência na obtenção da independência e consolidada com o processo de resolução de conflitos que nos foi imposto após nos tornarmos Estado independente.
"O nosso processo de resolução de conflitos afirma-se cada vez mais, e não o fazemos apenas aqui, onde fomos considerados órfãos da guerra, mas com as ideias claras sobre o que queríamos”, enfatizou.
O veterano diplomata referiu que a resolução de conflitos era algo importante, porque não há desenvolvimento sem que se resolvam as diferenças e se consolidem Estados de paz, pois, "superando os conflitos que temos entre nós, sejam eles internos, com vizinhos ou noutras paragens”.
Para Ismael Gaspar Martins, a paz tem que ser real e assumida, tendo acrescentado, neste particular, que Angola vai continuar a desempenhar o seu papel como está a fazer na RDC e nos seus vizinhos, sobretudo com o Rwanda, na questão do conflito com o M23.
No entanto, 21 anos depois do fim da guerra em Angola, prosseguiu, a questão da paz e a prevenção de conflitos está alicerçada na sociedade angolana e projecta-se para o mundo, conforme evidenciado pelo posicionamento responsável e ponderado implementados nos esforços de mediação directa em conflitos.
O antigo embaixador de Angola na ONU disse que o processo que conduziu à Independência Nacional representa a primeira experiência do país na resolução pacífica de conflitos. Na altura, continuou, a firmeza pela autodeterminação e a prevalência de acções de carácter militar, num contexto em que a guerra fria se internacionalizava, "a nossa busca pela Independência Nacional despertou a necessidade de uma resolução na Assembleia-Geral das Nações Unidas, e, com isto, foram fracturadas alianças”.
"O estabelecimento dos diálogos, que conduziram ao 11 de Novembro de 1975, foram efectivos porque estavam assentes na firme determinação de Angola de conduzir o país e o seu povo, para que pudéssemos ter uma paz que trouxesse desenvolvimento”, sublinhou.
Ismael Martins afirmou que, durante as primeiras duas décadas de Independência, Angola consolidou o carácter guiando-se por uma postura baseada no respeito da soberania, igualdade entre os Estados, direitos dos povos à autodeterminação. Destacou, ainda, que o Estado angolano valorizou a aplicação das práticas e políticas de solução de conflitos, o respeito pelos direitos humanos, a não ingerência nos assuntos internos dos Estados, a reciprocidade de vantagens e a cooperação com todos os Estados para a consolidação da paz mundial, da justiça e progresso da humanidade.
O diplomata afirmou que Angola deixou claro, a partir destes anos, que defende a abolição de todas as formas de colonialismo ou neocolonialismo e é contra a agressão, opressão e domínio na relação entre os povos.
Para o embaixador Ismael Martins, estes princípios nortearam não apenas a resolução dos conflitos internos angolanos, mas também orientam as normas à escala mundial.
Em conformidade com este princípio, Angola desempenhou um papel nos processos que conduziram à independência do Zimbabwe e da Namíbia, assim como ao fim do regime do apartheid na África do Sul, destacou.
A democracia não reina no Conselho de Segurança
Na mesma linha de pensamento, o embaixador do Brasil em Angola, Rafael Vidal, disse que o modelo de segurança, que vem se assistindo nos últimos 70 anos, tem mostrado fracassos, quer ao nível das Nações Unidas, quer noutros fóruns regionais.
Ao ler a mensagem da presidência do Conselho de Segurança das Nações Unidas para o mês de Outubro, sob tutela do Brasil, o diplomata recordou que aquele país da América do Sul sempre esteve na origem dos sistemas multilaterais, na busca de solução pacífica de controvérsia, mediação internacional e tem exercido esse papel, não apenas a nível global, mas também a nível sub-regional.
"Lamentavelmente, nas últimas décadas, o Brasil tem testemunhado o fracasso do modelo de segurança colectiva existente, e tem proposto a reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas”, realçou o embaixador do Brasil em Angola.
O diplomata acrescentou que quando se fala sobre a necessidade de se defender as democracias, "o Brasil está por trás desta linha de argumentação, mas a democracia tem que acontecer, igualmente, nas Nações Unidas, no seu Conselho de Segurança”.
Rafael Vidal sublinhou, a propósito, que "a democracia não reina no Conselho de Segurança das Nações Unidas, um facto que leva para o fracasso da sua capacidade de actuação internacional na prevenção e solução de conflitos internacionais”.
Um outro modelo que não tem dado certo nesta questão da segurança colectiva, apontou, é o modelo da OTAN. Lembrando, neste sentido, que a Organização, criada no final da II Guerra Mundial, deixou de actuar com eficácia na prevenção e solução de conflitos no período pós guerra fria.
"O Brasil tem testemunhado com muita tristeza um certo colapso da capacidade diplomática global e regional, que tem impedido e dificultado a busca de soluções de consenso e cooperação internacional”, aflorou o embaixador Rafael Vidal.
Acrescentou que os modelos de segurança colectiva existentes, ao invés de privilegiarem a cooperação e a busca de solução de coexistência pacífica, "têm privilegiado o uso da força e do discurso das armas e da guerra, em detrimento do discurso da paz”.
"Mediação é uma forma de solidariedade”
No que concerne ao tema central da conferência, o professor associado de Relações Internacionais e Estudos para a Paz na Universidade Federal de Uberlândia do Brasil, Aires Toledo, disse que a mediação, dentro daquilo que são os mecanismos pacíficos de controvérsia, deve ser sempre o primeiro passo.
"No início de conflitos ou diferenças entre as posições das partes, a primeira iniciativa é sempre tentar uma mediação”, enfatizou.
Quanto a esta questão, referiu que existe uma série de técnicas, tendo feito menção a obra que apresenta mais de 150 técnicas de resistência não violenta para se resolver os conflitos. "Antes de se pensar em violência, devemos sempre testar essas técnicas”, afirmou.
Para Monica Herz, professora titular do Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO), a mediação pode ser entendida como uma forma de solidariedade. "Os conflitos de uns acabam sempre por atingir os outros, de uma forma ou de outra. Tendo em conta essa interdependência e a nossa característica comum humana, cabe a esses enfrentarem não apenas aqueles conflitos nos quais estão envolvidos, mas, também, de outrem, e nisto ajudá-los a resolvê-los”, disse.
A professora Monica Herz argumenta que "se trata de uma responsabilidade maior em relação à nossa comunidade humana, internacional ou nacional, onde nós percebemos algo que nos é comum”.
Já Emmanuel Habuka Bombande, ex-vice-ministro dos Negócios Estrangeiros do Ghana, destacou, no final da sua abordagem, que a mediação providencia alternativas que não alimentam os conflitos.